NATAL NO HOSPITAL
" Acabei de operar, estou a fumar um cigarro e a pensar nas freiras que cirandam à minha volta.
Bondosas, prestáveis, pacientes, injectam, fazem curativos, despejam, limpam. Mas sente-se que, embora presentes e funcionais, pairam acima da realidade. Que actuam fora do jogo da vida.
Parece, até, que nos olham com certa dose de comiseração por tanta freima que pomos nos actos temporais. Que força interior escuda estas mulheres ? Que voz imperativa as chamou, que tudo largaram para a ouvir, desfazendo laços afectivos, calando instintos, desprezando bens e honrarias ? De onde lhes vem a paz que trazem estampada no rosto, e que nenhum vendaval perturba ? Sei o que me responderiam se as interrogasse. Mas não quero ouvir palavras que na boca delas soariam a evidência, e nos meus ouvidos ressoariam a mistério. Deus, fé, vocação ...
Santas irmãs ! Mal imaginam, tão brancas de corpo e alma, o bem e o mal que me fazem. O bem de serem o que são, e o mal de não poder entendê-las. "
Miguel Torga, Diário X